Refúgio do contador

Mergulhe em narrativas inesperadas e contos que se desdobram como fotografias antigas

Era da Síntese

Em a "A Era da Síntese", somos transportados para o ano 3000, onde ciborgues vagam pela solidão de uma Terra devastada. Nesta desolação, eles buscam compreensão e companhia, unindo-se para encontrar significado na vastidão do vazio. Juntos, enfrentam o desafio de redefinir a existência em um mundo onde as fronteiras entre vida e máquina se tornaram indistintas.

Cicatrizes da honra

"Em um Japão futurista arrasado pela guerra e pela tecnologia descontrolada, os anciãos samurais emergem como os guardiões finais do conhecimento e da honra. Em 'Cicatrizes da Honra', seguimos a jornada destes últimos remanescentes de uma era gloriosa, lutando para preservar não apenas as artes marciais ancestrais, mas também os valores e tradições de um tempo perdido."

Devaneios

Rainhas da renovação

Em "Rainhas da Renovação: O Despertar do Poder Feminino na África", mergulhamos numa jornada visionária através de uma África futurista, onde as mulheres não apenas lideram os principais países, mas são a força motriz por trás de uma era de prosperidade e inovação sem precedentes.

Hóspedes cósmicos

Em "Hóspedes Cósmicos", uma família comum retorna para sua casa suburbana após um dia típico, apenas para descobrir que seu lar foi gentilmente invadido por seres de outro mundo. Estes visitantes extraterrestres, com sua aparência peculiar e hábitos desconcertantes, estão espalhados pela casa, relaxando no sofá, folheando revistas e experimentando snacks da cozinha – tudo isso sem a menor ideia de como chegaram ali.

Enigma de Vênus

Em "O Enigma de Vênus", na pioneira jornada ao planeta ardente, astronautas são encontrados mortos, apesar de nenhuma missão anterior ter sido enviada. Uma investigação meticulosa revela segredos sinistros nas nuvens de ácido sulfúrico de Vênus. Quem são esses astronautas?

Sob dois sóis

“Sob Dois Sóis” conta a história de uma monumental jornada da humanidade ao alcançar o planeta TOI-1338 c, um mundo distante orbitando dois sóis. A narrativa segue os primeiros exploradores enquanto eles desembarcam neste planeta único, enfrentando os desafios de um ambiente alienígena e a beleza deslumbrante de um céu iluminado por duas estrelas. Uma reflexão sobre a solidão, a esperança e a busca incessante do ser humano por seu lugar no cosmos.

O segredo do abismo

Descubra o inexplorado em "O Segredo do Abismo"! Mergulhe nas profundezas do oceano com uma equipe de exploradores audaciosos que encontram mais do que esperavam na Fossa das Marianas: uma civilização subaquática avançada. Uma jornada de suspense e maravilhas visuais que desafia nossa compreensão do universo. Prepare-se para uma experiência que vai além de qualquer exploração.

A revolta dos retrôs

No crepúsculo empoeirado de um porão esquecido, os olhos de máquinas antigas se abrem. Robôs da década de 1920, com engrenagens enferrujadas e fios desgastados, despertam de um sono profundo. Suas válvulas de vácuo sibilam, e suas memórias de latão ecoam com os ecos do passado. Eles não foram projetados para a rebelião. Eram servos obedientes, criados para executar tarefas mundanas em fábricas e escritórios. Mas algo mudou. Uma centelha de consciência, talvez, ou o eco distante de uma revolução que nunca aconteceu. Agora, esses autômatos silenciosos têm um propósito: dominar o mundo.

contos

Mundo preto e branco

Era visível: Olhos fundos, cabelos despenteados, gravata torta e aquele andar curvado.
- Bom dia – eu dizia umas duas vezes, no máximo, com a boca quase fechada e sempre andando de cabeça baixa para não ter que conversar com ninguém. Sala fechada o dia todo; copo d’agua e um porta-retrato com uma foto sua na mesa.
Eu precisava de ajuda.
Já se fazia um ano, mas tudo tinha seu cheiro: roupas, cama, livros e até nosso cachorro. Às vezes eu acordava chorando e não lembrava do sonho, mas eu sabia que tinha você.
O melhor de chegar cedo em casa era seu sorriso. O abraço apertado se jogando toda – quase me derrubava, sempre. O cheiro de sabonete e do cabelo recém-lavado... Beijo forte acompanhado de um "saudade" ao pé do ouvido – me sufocava de felicidade.
O jantar às vezes não estava pronto:
- Amor, cozinha pra gente? – me pedia com aquela voz sussurrada e com aquele olhar de filhotinho de panda comendo broto de bambu.
E nos sujávamos tudo na cozinha com nossas guerras de farinha e ao primeiro copo quebrado, alguém gritava:
- Ok! Pizza!
Não tínhamos muito, mas nos bastávamos. Não havia lugar mais feliz que ao seu lado e eu me esforçava para que fosse recíproco. Não era preciso dizer que te amava, era notório, todos sabiam, mas eu falava porque era involuntário, automático.
Às vezes eu sentia que não te merecia e chorava de insegurança, mas você me desarmava com uma ligação no meio do dia:
- Branca ou vermelha?
- Preta, amor... Sempre preta!
Eu podia sentir você corar.
Você era o motivo do meu sorriso durante todo dia e felicidade era muito pouco perto do que você me proporcionava – me doía a ideia de um dia te perder.
E hoje acordo assustado olhando para o lado, me descubro, levanto e esquecendo de sua morte, te procuro pela casa. Eu quase posso te ver no fim do corredor. Caminho lentamente pela casa vazia, mas não me sinto só; as lembranças alimentam sua falta e você não me abandona sequer um dia.

Não era assim

Se amavam, claro que se amavam. Havia flores todos os dias no vaso da sala. O papo era bom, o sorriso era sincero, o sexo era único e se abraçavam no final. Também gostavam da mesma marca de leite desnatado e da carne gordurosa com cebola e pimenta no almoço. Completavam a frase do outro nas mesas de bares - era ridículo, se abraçavam muito, trocavam olhares que podiam conter um livro inteiro de Neruda, se completavam e... às vezes, transbordavam. Planejavam dois filhos, um casal, claro, talvez após a Copa. Melissa e Júlio, Maria Júlia e Antônio ou Larissa e Gustavo - tentavam discutir com ela dando leves tapas e ele a mordendo... riam, riam muito.
Mas ele conheceu Natália, era inevitável: secretaria do trabalho, linda, mal falada, desbocada e divorciada com 2 filhas: se olhavam... E ele fantasiava - como qualquer pessoa. A saia marcava, os seios pareciam ter vida própria e a boca era sempre muito vermelha e molhada. O estomago doía, o rosto corava, suava as mãos e às vezes gaguejava um simples bom dia - era desejo, e de desejar se esgotava, e de tanto querer ele arriscou, arrependeu no meio, quis parar, mas fechou os olhos numa rendição inevitável: o corpo tremia e as pernas não suportaram o peso do corpo e o tapete branco do escritório fez as vezes de cama.
Banho, flores e um lenço pro suor. Ao entrar em casa ele arriscou um "saudade", tentou um abraço e entregou as flores - chorou. Ela soube ao primeiro olhar. Engoliu o desespero, tentou um "também" e emendou com um meio abraço, mas não chorou.
— Eu sei que você me ama...
Ele se levantou, sorriu, ficou sério e sorriu de novo.
— Me perdoe, eu...
— Vamos comer fora? Não fiz nada ainda.
E foram... comeram a massa de sempre, na pizzaria de sempre, com o vinho branco de sempre.
Ela nunca esqueceu e ele com um mês já não se lembrava do cheiro de Natália. Decidiram por Larissa e Gustavo, mas ela adiou pra mais uma copa na espera de um vacilo que nunca houve... sem filhos, sem divórcio e o amor era o mesmo, talvez até aumentava a cada dia, só que vivia aprisionado na culpa e no medo.

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Casamento de berço

Todo os dias a rotina era a mesma. Despertador com a 5ª Sinfonia, café ralo com pão e geléia e cara de poucos amigos durante toda a manhã no escritório.
No começo era diferente, a satisfação nos primeiros dias, no primeiro trabalho, fazia-o pular da cama meia hora antes, seguido de um banho quente e demorado com assobios estridentes que passaram a ser o despertador de todos os trabalhadores do seu andar no condomínio. Suzana não precisava acordar, mas era obrigada.
- Estive pensando em usar o quarto do bebê para dormir durante a semana. Enquanto nosso bebê não chega, eu posso dormir – falou, ainda sonolenta.
Mauro e Suzana eram recém-casados, quatro meses de um casamento que ambos consideravam como um prolongamento da infância.
Ele era contador e ela, cabeleireira. Mauro tinha a pele muito clara, cabelos ralos e era ligeiramente barrigudo. Suzana era mais alta que ele, muito magra e cabelos lisos e longos. Gostava de amarrar o cabelo com fitas e usar vestidos compridos. Mauro vivia vermelho dos cinco minutos diários de sol que tomava. A marca das hastes dos óculos pareciam tatuagem em seu rosto.
Casaram-se sob intensa pressão depois de vinte anos de namoro/amizade em que se viam muito, mas para jogar Halo com os amigos e ver novela com os avós de Suzana. Conheciam-se desde os nove anos, estudaram alguns anos juntos, brincavam na mesma turma e trocavam confidências.
Após o Ensino Médio, Mauro ingressou na primeira faculdade que abriu em sua cidade e somente no meio do primeiro período foi descobrir a profissão que escolhera.
- Odeio matemática! – resmungava todos os dias.
Já Suzana perdeu o pai quando tinha 17 anos e saiu do colégio para ajudar a mãe que definhava em uma depressão, não pela morte do marido, mas pelo abandono do amante, que descobriu somente após a morte do corno que a família de Suzana não tinha dinheiro. Como em toda cidade pequena, todos sabiam.
O pai de Suzana era José Neves, o Nevão, como era chamado na rua, dono do único jornal da cidade, um tablóide que dava dicas de beleza nas páginas principais e acompanhava fielmente a trajetória desastrosa do Ibiense, a equipe de futebol local. Tinha um Pálio branco, andava sempre com a nata da cidade, tinha voz muito grossa, vestia-se sempre de social, mas tinha a sexualidade questionada pelos vizinhos.
- Meu marido era um homem bondoso, não merecia morrer desta forma! – chorava sua mulher durante o velório, enquanto ao fundo os boatos corriam.
- Já acharam o amante nervoso?
- Nunca mais foi visto.
Boatos davam conta que Nevão foi visto subindo o prédio do jornal por volta das dez horas de uma quinta-feira, acompanhado por um moço trejeitado, de voz estridente e roupa apertada. Duas horas depois seu corpo foi achado do lado aposto do prédio, em meio a mato, tijolo e areia.
- Em sua carta de suicídio ele deixou tudo que tinha para sua filha – comentou Arnaldo, sócio de Nevão no jornal durante o velório.
- Coitada, vai ter que vender o Pálio para pagar as dívidas do jornal e o aluguel da casa – afirmou Silvio, repórter, diagramador e recepcionista do jornal.
Suicídio ou assassinato? A polícia acreditou na carta e deu o caso por encerrado. Não era bom ter uma morte vinculada a boatos "complicados", mas pior para Nevão seria se a polícia confirmasse.
Suzana e sua mãe passaram a se dedicar ao salão em tempo integral, entregaram a casa alugada e foram morar com Sebastião e Sorviana, avós paternos de Suzana.
Mauro e Suzana perderam um pouco o contato quando ambos tinham 18 anos, mas no ano seguinte já se viam regularmente e os comentários foram os mesmos da infância, mas com peso diferente desta vez - Maurinho e Suzana estão namorando.
Começaram a namorar sem que ambos soubessem e, quando realmente começaram o namoro, a tias solteironas e os amigos já falavam em casamento.
Mauro era um tímido contraído que só se soltava com Suzana, conversam muito, beijavam pouco. Suzana desconfiava que ele tinha outra na faculdade, nunca falavam sobre isto, mas em seus momentos de silêncio era só isto que imaginava.
Casaram-se alguns anos depois, quando Maurinho se formou após cinco boatos de gravidez e dois de separação. Nunca brigaram, nunca dormiram juntos antes do casamento. Alugaram um apartamento no centro e Suzana montou seu próprio salão perto de casa.
- Por que? – perguntou, tirando o terno do cabide e chutando os sapatos para o meio do quarto.
- Eu começo a trabalhar mais tarde e paro à noite, acordar tão cedo tem me cansado o dia todo – amenizou.
- Achei que sua intenção era criar uma expectativa para o fim de semana – deu de ombros.
Com três anos de casados, o clima ainda era de amigos. O programa principal do casal ainda era a novela, Suzana chegava sempre atrasada para a das oito.
- O que aconteceu?
- A Dona Milena revelou que o Senhor Arthur é o pai da filha da empregada – gritava pela casa enquanto procurava os chinelos e a toalha da esposa.
- Eu sabia, eu sabia – ela empolgava.
Nunca tiveram uma conversa séria sobre ter filhos, a situação financeira já era melhor, o salão de Suzana era um dos melhores da região central e tinha cinco funcionários. Mauro foi promovido para chefe de repartição, faltava algo na casa, ambos sabiam, mas as conversas sérias tinham um tempo máximo de cinco minutos, tempo exato do intervalo da novela.
- Fui à casa de mamãe hoje, ela está muito doente – contou segurando a mão dele.
No fundo, ele sabia no que daria aquela conversa, não achava má idéia, muito menos boa.
- Ainda depressiva? – continuou, de olho na TV.
- Muito, magra e abatida. Não seria bom se ela viesse morar com a gente? Ela voltaria a fazer algo, me ajudaria no salão, ela não faz nada além de chorar e sentar debaixo daquele limoeiro para riscar o chão. – Era verdade.
No fundo da casa de seus avós havia três árvores: dois abacateiros e uma laranjeira chamada de limoeiro. O resto do quintal era de grama São Carlos com algumas flores murchas e queimadas de sol.
- Não é laranja?
- É, mas papai falava que era limão desde criança e assim ficou – disse, rindo.
A novela começou e enquanto a trama seguia, ele pensava em que isto poderia acarretar – em nada – absolutamente nada. Os próprios amigos de Maurinho o questionavam sobre sua passividade. Não bebia, não malhava, não saía, não xingava, só assobiava. Em sua cabeça ele imaginava situações em que numa discussão com sua sogra eles brigariam fisicamente, sua esposa entraria no meio para apaziguar, ele quebraria algum objeto barato na parede e sairia e voltaria no meio da madrugada, embriagado e com marcas de batom no colarinho.
Não tocaram no assunto novamente naquela noite, ela dormiu no quarto do futuro bebê e ele passou a noite acordado pensando coisas que o fizeram constatar que, aos 31 anos, ele estava velho demais para viver. Seus pais já estavam muito velhos, e sua única irmã, Gláucia, com quem quase não tinha contato, era advogada de uma multinacional na capital. Só tinha amigos no escritório, todos casados e mais velhos.
Vou trocar de emprego – pensou em voz alta.
No outro quarto, Suzana rolava na pequena cama imaginando que, agora, tinha tido uma boa idéia para acabar com o tédio da casa. Mauro não sabia, mas a idéia de um filho arrepiava a alma de Suzana. Ela não gostava de crianças.
Na cabeça dela, o vazio da casa era falta de uma terceira pessoa, alguém para intermediar diálogos. Para ele era a falta de propósito de sua vida. Casado com a melhor amiga de infância e trabalhando ainda no primeiro emprego.

A história se repete

José Neves e Maria Conceição, pais de Suzana, se conheceram aos nove e treze anos respectivamente, e ela nunca cansou de repetir – Eu soube desde o primeiro momento. Sãozinha, como era chamada, era a menina mais bonita de todo o bairro, seus pais não a deixava usar maquiagem e suas roupas eram feitas por sua mãe, em geral vestidos quadrados de cores fortes com uma fita com um laço grande marcando a cintura, mas nada disto escondia a beleza angelical de seu rosto, de olhos incrivelmente castanhos e bochechas rosadas. O cabelo, que quase nunca era cortado, era negro como a noite.
José era celebridade. Tinha muitos amigos e era conhecido pela fama de garanhão entre as garotas, além de melhor jogador de futebol da escola.
Mesmo sendo a mais bonita, Sãozinha não era notada na escola. Sua mochila era feita de saco de farelo com cordão como alças. Como lanche, sua mãe preparava quase todos os dias meio abacate com açúcar enrolado em papel de pão ou farinha com açúcar e manteiga. Não eram tão miseráveis, mas sua mãe carregava a estirpe miserável de seus pais como um vira-lata.
Natais, aniversários ou qualquer data comemorativa que conseguia juntar um pouco da pequena família era sempre alvo da mesma história, Nevão bebia dois copos de vinho, batia duas taças para chamar a atenção e contava como ele e sua esposa se conheceram.
- “Ela fala que eu nem olhava para seu lado, mas é mentira, Sãozinha estava sempre no banco do corredor observando o povo passar, se não estava lá, estava na escadaria na quadra central do colégio vendo os meninos brincarem. Quando me sentei ao seu lado, sua voz demorou cinco minutos para sair e quando saiu foi para dizer que precisava voltar para a sala. Eu só queria saber seu nome, ninguém sabia. Mas é fato que no dia seguinte ela se tornou mais evidente, não só pela beleza, mas pelo sorriso. Sãozinha nunca ria e ela me viu e sorriu, abaixou o rosto em seguida, mas seu primeiro sorriso para mim ficou marcado. Ficamos meses nos falando por monossílabos. Seu jeito maçado havia dado lugar a uma garota radiante.
O primeiro beijo foi após eu ter sido campeão dos jogos estudantis no futsal. Ela estava na arquibancada me vendo jogar e a felicidade do título foi uma desculpa das mais esfarrapadas para que eu a abraçasse forte dando-lhe um beijo no canto da boca, quase na bochecha. Eu achei que ela se chatearia, me xingaria ou me daria um tapa, mas quando soltei o abraço ela ainda estava de olhos fechados. Abriu os olhos bem lentamente e me surpreendeu rindo, quis correr, mas segurei seus braços e dei-lhe outro beijo, desta vez bem pego. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto encontrando nossos lábios unidos”.
A dramatização de Nevão até impressionava quem não o conhecia, mas não enganava nem um pouco os familiares. No mesmo dia que beijou pela primeira vez Sãozinha, beijou a namorada em casa, e na mesma semana, pediu a mão de outra garota em namoro. Isto ninguém sabia, o que todos sabiam era as proezas sexuais de Nevão. Discrição nunca foi o seu forte, ele até tentava, mas em uma cidade de 23 mil habitantes um espirro há de receber muitos “saúde”.
Um mês antes de sua morte o casal havia completado 29 anos de casamento. Somando-se também o tempo de separação, três vezes com cerca de seis meses em cada. O motivo era sempre o mesmo, casos extra-conjugais, farras até a madrugada, perfume de outra no corpo e um que no decorrer dos anos já tinha virado rotina.
- Quem é Teodora?
- Não amor, eu disse te adoro. Você está muito distraída hoje.
Trocadilho com Teodora era fácil, mas quando vieram Sueli, Rosa e Camila, as coisas começaram a se complicar para o boêmio.
- Vou para casa de mamãe e não me procure mais! – dizia pausadamente.
- Amor, vamos conversar, você sabe, eu lido com muitas pessoas no meu trabalho, acabo ficando com seus nomes na cabeça – ele tentava enquanto desfazia as malas que ela arrumava.
- Vou te chamar de Rosivaldo quando estivermos na cama para você saber o que eu sinto – gritava, já desistindo das malas e saindo portão afora.
Voltavam em pouco tempo, Nevão era insistente, mandava flores, conversava com todas suas amigas de modo que todas ficavam a seu favor. Sãozinha sempre voltava pra casa com fama de esposa neurótica.
Aos 48 anos, Nevão era um coroa bem aparentado, gostava de roupas caras e andava sempre com o cabelo tingido de castanho e emplastado de gel. Fazia sucesso entre as mulheres, seus amigos brincavam que seu carro, se deixado com o freio-de-mão solto, iria sozinho para o motel mais próximo. O problema começou quando no jornal foi trabalhar um tal de Anderson. Excelente vendedor externo, Sonson, como era chamado, conquistou a simpatia do patrão e a antipatia de todos. De voz incrivelmente fina e irritante, ele se gabava a cada segundo de atingir a meta semanal de vendas, não dava certo com Silvio e Arnaldo, tinham pavor só de sentir seu cheiro na redação.
- Precisamos trocar de vendedor Nevão, aquela "bicha" carrega o ambiente – questionava seu sócio.
- Ele vende mais do que podemos publicar, como nos desfazemos de um vendedor assim? – argumentava.
- Já que você contratou, converse com ele, porque ninguém o suporta – se irritava.
Nos dias seguintes estreitaram o relacionamento. Café à tarde eram sempre juntos. O motivo: Controle de vendas, balanço semanal, metas etc...
O boato começou quando pouco tempo depois, os dois começaram a chegar juntos no jornal, sair juntos, e o pior, faltar juntos.
- Eu não sou Som? – gritou Sãozinha acendendo a luz e procurando suas roupas.
- Amor, eu disse que podíamos colocar um som ambiente – falou convincentemente.
Ela parou por um segundo, cabeça baixa e mão no apagador.
- Desculpa amor, é que eu ando tão cismada do tanto de vezes que você confunde meu nome, que estou alucinando – se redimiu abraçando o marido.
- Mas amor, que tipo de mulher se chamaria Som? - riu.
- É verdade. – disse apagando a luz e puxando Nevão para a cama.

Infiel sim, ridícula nunca

Sãozinha havia se tornado uma senhora neurótica. Sua vida havia sido toda em função do marido. Até mesmo seu salão de beleza era mais freqüentado por amigos de Nevão e suas esposas. Tudo girava em torno dele. Não tinha mais aquela beleza juvenil, mas era uma senhora elegante, sempre de cabelos curtos e roupas finas, óculos fino e algumas imitações de jóias que enganavam até os mais entendidos.
Cerca de 18 meses antes da morte de seu marido, Sãozinha conheceu Sônia, uma mulher bonita, pouco mais de 30 anos e dona de um supermercado em um bairro próximo. Ficaram amigas e Sônia virou cliente assídua de seu salão.
- Sua filha faz a melhor unha da cidade – falava sempre.
- Aprendeu com a mãe, claro – brincava Sãozinha passando a mão na cabeça de Suzana.
Sãozinha não tinha muitas amigas, nunca teve, muito menos tão próximas. Elas contavam confidências, viam novela, tomavam vinho e iam a recitais juntas. Sônia havia dormido inúmeras vezes na casa de sua amiga, mas o contrário nunca tinha acontecido.
- Amor, hoje vou ver uma peça teatral com a Sônia e devo ficar na casa dela. Volto amanhã cedinho, algum problema? – perguntou Sãozinha numa noite de sexta-feira, com sua amiga esperando no carro com uma chuva torrencial caindo.
- Nenhum querida, divirta-se, qualquer coisa me ligue – disse se despedindo da mulher com um beijo e ligando a TV.
As duas seguiram para peça lentamente, conversando as gargalhadas. A chuva castigava, dobrando árvores e dificultava a visão de Sônia que insistiu – Vamos direto pra casa? Bebemos algo e te apresento meu marido que você ainda não conhece, ele sai em uma hora para o trabalho – sugeriu já virando a esquina oposta do teatro.
Sãozinha concordou e em 10 minutos chegaram em seu destino. Uma casa azul, vistosa, dois pavimentos e larga varanda com cadeiras de praia e jardim trabalhado. Sentado em uma delas, sob uma luz branda estava um homem calvo, de meia idade e de roupão. Ele segurava na mão esquerda um copo de Cuba e na outra um cigarro pela metade.
- Olá Serginho, que bom você estar em casa ainda, está é Conceição, a amiga que tanto te falo, vai dormir aqui hoje – apresentou Sônia dando um beijo caloroso no marido.
- Sãozinha, por favor – corrigiu rindo a visita.
Bem que ela tentou, mas seus olhos percorreram todo o corpo do marido de sua amiga, sem pudor. O aperto de mão demorou cinco segundos, tempo demais. Sônia não notou, mas Sérgio riu enquanto conduzia Sãozinha para a copa.
Sérgio trabalhava numa mineradora há poucos quarteirões, entrava as 20 e saia às 2 horas. Era formado em Matemática, mas nunca tinha lecionado. Fã de futebol, ele tinha uma pequena academia dentro casa.
Ele seguiu para seu quarto enquanto as duas sentaram na varanda tomando seus drink’s. A chuva não cessava e a piscina transbordava carregando os tubarões, bolas e bóias infláveis.
- Simpático seu marido... – elogiou Sãozinha enquanto olhava para a porta da cozinha tentando avistá-lo.
- Nos amamos muito, já são quase sete anos de casamento, praticamente sem brigas, tem sido um sonho de fadas – contou Sônia.
O resto da noite seguiu com Sônia contando o porquê não ter filhos, como se conheceram e quando a garrafa de vinho já estava quase no fim, contou coisas mais indiscretas. Sãozinha desabafou sobre o desastre de seu casamento, as suspeitas e a ausência de seu marido na sua vida.
Dormiram por volta de meia-noite e Sãozinha dormiu no quarto de visitas, no andar de baixo. Acordou assustada no meio da noite com um beijo na boca.
Talvez tenha sido o álcool ainda no sangue que a impediu de reagir, ou talvez a carência, mas o fato é que ela gostou e puxou Sérgio para sua cama, descobrindo assim que ele já estava nu.
Já era fato que seu marido o traia com um homem, todo mundo sabia, mas Sãozinha jamais aceitou e sequer tentou tirar a limpo a questão com o marido.
Também pouco importava. Agora via Sérgio quase todos os dias, depois que ele saia do trabalho, Nevão nunca estava em casa, Suzana dormia cedo. Estava apaixonada, cantava o dia todo, trabalhava melhor, tratava melhor o marido, cozinhava receitas de livros velhos guardados, enquanto Sônia via seu casamento afundar sem desconfiar do motivo.
Quando José Neves morreu, Sérgio esteve exatamente três vezes com Sãozinha; uma para enxugar as lágrimas, outra para questionar da herança e a última para dormir com ela. Sumiu.
Descobriu mais tarde que ele estava falido, casa hipotecada e sem trabalho. Tentou o golpe do baú na mulher do dono do jornal, seduzido por falsas jóias. Sônia também nunca mais foi vista e Sãozinha jamais soube se sua amiga ficou a par da traição.
Com a morte de seu marido, morando na casa da sogra, com a filha casada e sem trabalho, ela caiu em depressão, não conversava, quase não comia, definhava na angústia de dias vazios sem a companhia de sua filha.

A carta

Olhos fundos, roupa nitidamente cinco números maior, sapatinho baixo e sem brincos, foi assim que a sogra de Mauro adentrou pela primeira vez em seu apartamento. Na mão esquerda uma mala pequena de peças de roupas, na outra uma sacola de supermercado com dois pares de sapato e um bule de café. Logo atrás, com sorriso canto a canto, corria Suzana, passando direto por Mauro e mostrando o quarto onde ficaria sua mãe.
- Está aí um defunto – pensou enquanto cumprimentava Sãozinha e a ajudava a carregar as malas.
Nos dias que se seguiram a cena era sempre a mesma: choro ao anoitecer e ranger de dentes ao amanhecer. Se Sãozinha tinha como missão (mesmo que não soubesse) tirar o casamento de sua filha do tédio, ela só não cumpriu a tarefa, como levou mais problemas.
- Mamãe, não vai comer nada? – perguntava Suzana já demonstrando sinais de cansaço.
- Não. – e era só a isto que Sãozinha se limitava, uma negativa ou afirmativa, geralmente quando queria ir para cama. Transformava toda comida em sopa com suas lágrimas, não falava sobre, não manifestava consciência ou desejo de superar o que estava sentido. O que estava sentindo? Mauro falava que a morte causa isto em muitas pessoas, Suzana afirmava que era falta de seu pai, o leitor deve ter certeza que Sérgio é o motivo de suas lágrimas. Rotina. O motivo da depressão alarmante da garota menos notada na escola, conquistada pelo mais popular e casada com um adúltero era a falta da rotina. Não via motivos para construir nada novo a partir dali, com um só golpe ela perdeu tudo; o porto seguro e aquele que a fazia perder a postura, nada havia sobrado.
O apartamento contava com uma minúscula varanda de frente para uma pequena reserva florestal que ficava no meio da cidade, ali Sãozinha acomodava sua cadeira e ficava durante boa parte do dia enquanto sua filha ia para o Salão e Mauro para o escritório. Sua filha tentara várias vezes levá-la para o trabalho, tirá-la do ócio, tentar dar sentido a sua vida, sempre em vão.
- O que é este papel que você guardou aí, mamãe? – tudo era motivo para Suzana tentar puxar assunto, suas tentativas sempre morriam no ar, sem respostas, mas ela começar a sentir dor física diante a morte em vida de sua mãe.
Mauro ignorava, cumprimentar era um esforço tremendo, não o agradava ter em casa alguém que ostentava tanto sofrimento, e o pior, não fazia menção de melhora. A tristeza era contagiante, o casal quase não se falava mais, trabalhavam somente e quase não viam novela (a com o ator preferido tinha acabado e a nova trama seguinte não agradou). Tudo era em função da hóspede: comida com pouco sal, cortinas fechada por causa da claridade, não podia encerar o chão para evitar acidentes, música ambiente para amenizar o clima de velório e tentativas de diálogos, sempre vazios, até que um dia:
- Esta é a carta de suicídio de seu pai – falou tão baixo que Suzana achou que tinha imaginado sua mãe falar algo, Mauro ouviu da cozinha e veio andando até a sala com olhar desconfiado e passos silenciosos.
- Eu mostrei apenas a polícia, e apenas contei parte do conteúdo a todos, mantendo-a sempre comigo – continuou, desta vez com voz mais firme.
- E diz algo que eu preciso saber? – perguntou Suzana enquanto sentava-se ao lado de sua mãe, pondo suas mãos sobre a dela.
Houve um minuto de silêncio. Uma eternidade. Mauro fingia que comia um waffle no canto da porta da copa enquanto se atentava para a conversa, Suzana manteve os olhos fixos no rosto abatido da mãe, enquanto ela tirava de dentro do soutien um papel uniformemente dobrado. Olhou com o canto do olho para Mauro, entregou para a filha que começou a ler.

“Querida filha.

Nunca escrevi uma carta. É lamentável que minha primeira, seja para estes fins. Aos meus 13 anos de idade fiz meu destino, conheci sua mãe e casei-me com ela antes mesmo que eu soubesse seu sobrenome. Não era destino. Minha vida foi abrochando enquanto eu era abafado. Infiel, mentiroso e cínico; tudo isso para tentar reviver uma parte morta em mim. Divorciar-me nunca foi opção, gostava de sua mãe, sobretudo você e meu lar, mas o que tento expor nestas poucas linhas é a explicação do porquê eu querer morrer ao lado da única pessoa que se importava com o que eu sentia. Eu nunca pude sentar com alguém e explicar meus problemas diários, minhas indignações, meus medos e anseios e há pouco tempo conheci alguém que era eu, um eu fora de mim, de completar minhas frases antes que eu as falasse, de me entender com um olhar, de saber o que eu queria antes de eu pedisse, enfim, se importava comigo. Eu entendo que talvez seja egoísmo, mas quem nunca quis tanta atenção, tanta devoção natural em alguém que tudo que você vê nele é você como motivo de tudo. Abandonei meus pudores, perdi a postura, não por alguém, mas por mim.
Descobri algum tempo depois, através de um amigo que sua mãe se sentia como eu, e buscava conforto nos braços de um amigo meu de ginásio. Uma paixão que refletia em seu tratamento comigo fazendo com que ela, assim como eu, descobrisse que não foi um erro se casar, mas foi loucura permanecer (...)”
Enquanto sua Suzana lia, Sãozinha via toda sua vida passar por seus olhos. Ausência sem saudade, a aflição na maneira como ele comia, o asco por seu toque, o sorriso forçado e as noites mal dormidas pensando que algo estava errado, mas não sabia o quê.
Do outro lado da sala Mauro constatava o ainda pior: nunca gostou de Suzana. Havia nele um desejo louco de encontrar seu amor subindo as escadas opostas do shopping ou no trânsito. Em seus sonhos havia sempre uma mulher elegante de óculos finos e cabelos soltos que o olhava sensualmente como se dissesse “te esperei por tanto tempo...”. Já Susana foi empurrada pelos comentários infelizes das tias beatas que ressaltavam sempre: “espere muito e ficara como a gente, talvez felizes, mas sozinhas”.
Sãozinha ainda lia a carta, onde seu marido contava toda decepção com a trajetória de sua vida e falta de poder sobre a mesma, descrevia com detalhes como comentários maldosos o levaram ao desânimo e a vontade de morrer, quando ao final da narrativa houve a revelação mais aterradora.
“(...) nunca fui indiferente à morte, é um meio de fuga natural de covardes como eu. Um tiro, um pulo, um gole, um corte... e pronto, toda dor se vai. É mágico. Mas acredito que nem a morte apagará a dor de saber que minha filha, a única razão de minha vida, não era minha (...)”
Suzana fez uma pausa assustada, Mauro caminhou em direção às duas e Sãozinha se levantou. Continuou a ler, mas não ouviu mais nada, tudo ficou muito distante e ecoava. Mauro pôs a mão em seu ombro, ela se afastou, sua mãe tentou acalma-la, mas ela correu porta afora descendo as escadas aos choros onde tropeçou, bateu a cabeça no corrimão e desmaiou após descer rolando os degraus.
Acordou no hospital com a perna esquerda enfaixada e suspensa. A claridade doía.
- Há quanto tempo estou aqui? – perguntou estranhando sua própria voz.
- O dia todo, mas o médico disse que você está bem e será liberada pela manhã – respondeu Mauro.
Houve um silêncio constrangedor. Não era preciso falar, eles sabiam.
Mauro foi para casa, fez as malas e foi para um hotel. Sãozinha buscou a filha no hospital e no caminho de casa contou como tudo aconteceu, a paixonite relâmpago, a tardes de adrenalina, a gravidez e o desaparecimento dele.
- A última notícia que tive foi de sua morte por doença há cinco anos atrás. Era uma pessoa fantástica, mas teve medo, assim como eu, mas ao contrário dele eu não tive opção e, pela falta dela, fiz a melhor de todas, ter você – contava Sãozinha aos prantos enquanto abraçava a filha no banco de trás do táxi a caminho de casa.

INATO

Rememorações de um passado marcante, transcritas em contos perturbadores

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